sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Que a minha mão não trema...

 Bibliocausto


Que a minha mão não trema

ao deitar no fogo forte e primitivo

todos os traidores

que me deram veneno.


Queimarei o frio

geometrizador da vida

lapidada através de lentes bem polidas

(ah, o horror daquela pedra voando,

tangida pela mão de não sei que demônio,

e a pensar, pelo espaço, que ainda tem arbítrio!…)…


Queimarei o detrator,

maníaco e vaidoso,

que quis deter a vida numa câmara lenta,

para a tingir depois numa câmara escura

(ah, o inferno galopando às doidas,

nos cavalos sem freios

da vontade cega e sem destino!…)…


Queimarei o louco,

ébrio de orgulho,

raivoso de fraqueza,

que destilava haxixe em frascos verdes

na paisagem alpina

(ah, o prazer com que ainda o queimaria

em cada uma das voltas pavorosas

do seu Eterno Retorno!…)…


E só ficará comigo

o riso rubro das chamas, alumiando o preto

das estantes vazias.

Porque eu só preciso de pés livres,

de mãos dadas,

e de olhos bem abertos…

– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 138-139.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Miau

 O GATO

Vinicius de Moraes


Com um lindo salto

Leve e seguro

O gato passa

Do chão ao muro

Logo mudando

De opinião


Passa de novo

Do muro ao chão

E pisa e passa

Cuidadoso, de mansinho


Pega e corre, silencioso

Atrás de um pobre passarinho

E logo pára

Como assombrado

Depois dispara

Pula de lado

Se num novelo

Fica enroscado


Ouriça o pelo, mal-humorado

Um preguiçoso é o que ele é

E gosta muito de cafuné

Com um lindo salto


Leve e seguro

O gato passa

Do chão ao muro

Logo mudando

De opinião


Passa de novo

Do muro ao chão

E pisa e passa

Cuidadoso, de mansinho

Pega e corre, silencioso


Atrás de um pobre passarinho

E logo pára

Como assombrado

Depois dispara

Pula de lado


E quando à noite vem a fadiga

Toma seu banho

Passando a língua pela barriga

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

O Riso e a Faca

Quero ser o riso e o dente

Quero ser o dente e a faca

Quero ser a faca e o corte

Em um só beijo vermelho


Fiz meu berço na viração

Eu só descanso na tempestade

Só adormeço no furacão


Eu sou a raiva e a vacina

Procura de pecado e conselho

Espaço entre a dor e o consolo

A briga entre a luz e o espelho


Tom Zé