sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Que a minha mão não trema...

 Bibliocausto


Que a minha mão não trema

ao deitar no fogo forte e primitivo

todos os traidores

que me deram veneno.


Queimarei o frio

geometrizador da vida

lapidada através de lentes bem polidas

(ah, o horror daquela pedra voando,

tangida pela mão de não sei que demônio,

e a pensar, pelo espaço, que ainda tem arbítrio!…)…


Queimarei o detrator,

maníaco e vaidoso,

que quis deter a vida numa câmara lenta,

para a tingir depois numa câmara escura

(ah, o inferno galopando às doidas,

nos cavalos sem freios

da vontade cega e sem destino!…)…


Queimarei o louco,

ébrio de orgulho,

raivoso de fraqueza,

que destilava haxixe em frascos verdes

na paisagem alpina

(ah, o prazer com que ainda o queimaria

em cada uma das voltas pavorosas

do seu Eterno Retorno!…)…


E só ficará comigo

o riso rubro das chamas, alumiando o preto

das estantes vazias.

Porque eu só preciso de pés livres,

de mãos dadas,

e de olhos bem abertos…

– João Guimarães Rosa, do livro “Magma”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 138-139.

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