domingo, 19 de outubro de 2014

Musa

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
O canto para todos
Por todos entendido

Musa ensina-me o canto
O justo irmão das coisas
Incendiador da noite
E na tarde secreto

Musa ensina-me o canto
Em que eu mesma regresso
Sem demora e sem pressa
Tornada planta ou pedra

Ou tornada parede
Da casa primitiva
Ou tornada o murmúrio
Do mar que a cercava

(Eu me lembro do chão
De madeira lavada
E do seu perfume
Que atravessava)

Musa ensina-me o canto
Onde o mar respira
Coberto de brilhos
Musa ensina-me o canto
Da janela quadrada
E do quarto branco

Que eu possa dizer como
A tarde ali tocava
Na mesa e na porta
No espelho e no corpo
E como os rodeava

Pois o tempo me corta
O tempo me divide
O tempo me atravessa
E me separa viva
Do chão e da parede
Da casa primitiva

Musa ensina-me o canto
Venerável e antigo
para prender o brilho
Dessa manhã polida
Que poisava na duna
Docemente os seus dedos
E caiava as paredes
Da casa limpa e branca

Musa ensina-me o canto
Que me corta a garganta

Sophia de Mello Breyner Andresen

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